Os novos vínculos de contratação no serviço público propostos na PEC 32/2020

A proposta de reforma administrativa contida na PEC 32/2020 prevê, entre outras alterações, a extinção do chamado Regime Jurídico Único no serviço público, com a instituição de uma série de novas formas de contratação pela administração pública. Esta nota tem por objetivo explicitar, de maneira sintética, quais serão essas novas formas de contratação e os possíveis impactos decorrentes dessas mudanças, caso a PEC seja aprovada nos atuais termos.

Novo regime jurídico de pessoal

Atualmente, a Constituição Federal, em seu Art. 37, inciso II, prevê que a investidura em emprego ou cargo público depende de aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, com a ressalva das nomeações para cargos comissionados, declarados em lei de livre nomeação e exoneração.
A PEC 32/2020 insere no texto constitucional o Art. 39-A, que determina a instituição de novo regime jurídico pelos entes, que irá compreender cinco novos vínculos com a administração pública:

  • Vínculo de experiência, como etapa de concurso público;
  • Vínculo por prazo determinado;
  • Cargo com vínculo por prazo indeterminado;
  • Cargo típico de Estado; e
  • Cargo de liderança e assessoramento.

Vínculo de experiência
Vínculo por prazo determinado
Vínculo por prazo indeterminado
Cargo típico de Estado
Cargo de liderança e assessoramento
Vínculo de experiência

Essa modalidade de contratação será uma etapa do concurso público para dois tipos de cargos, a saber: o cargo típico de Estado e o cargo com vínculo por prazo indeterminado. O servidor que ingressar na administração pública, por meio de concurso, para um cargo com vínculo por prazo indeterminado terá de cumprir, no mínimo, um ano de vínculo de experiência. Já o servidor que ingressar em concurso para cargo típico de Estado terá de cumprir, no mínimo, dois anos de vínculo de experiência.

Em ambos os casos, o servidor que não atingir, durante o vínculo de experiência, um desempenho satisfatório poderá perder o cargo. Dessa forma, o vínculo de experiência já desfigura o instituto da estabilidade e faz isso sem propor definição constitucional para os critérios segundo os quais poderá se dar a perda do cargo, o que dependerá de uma lei ordinária, a ser editada posteriormente.

Assim, o concurso público se torna menos atrativo, pois o candidato ao cargo só terá seu processo de ingresso finalizado após o término do vínculo de experiência. Isso pode fazer com que candidatos mais preparados não tenham estímulos para se dedicarem ao processo, já que a última etapa do concurso público pode não ter critérios objetivos e impessoais, o que implicaria na atração de servidores menos qualificados. No futuro, esse procedimento pode levar ao fenômeno da rotatividade no serviço público, uma possível descontinuidade na execução dos serviços públicos e o aumento de despesas com treinamentos de novos servidores.

Outra característica importante dessa nova modalidade de contratação é a incerteza quanto ao regime de previdência a que o servidor em período de experiência e que tenha sido contratado por prazo indeterminado estará filiado. Se, por um lado, a PEC 32/2020 prevê que, enquanto o servidor estiver sob o vínculo de experiência, sua filiação se dará junto ao Regime Próprio de Previdência do ente ao qual esteja vinculado, outro dispositivo do texto prevê a possibilidade de que lei aprovada por qualquer dos entes passe a vincular o servidor em período de experiência, que tenha sido contratado por prazo indeterminado, ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Essa mudança provocará a queda das receitas do RPPS e terá impactos negativos para os servidores aposentados (possibilidade de cobrança de alíquota extraordinária e aumento de base de contribuição) e atuais servidores (possibilidade de cobrança de alíquota extraordinária).

Vínculo por prazo determinado

Neste caso, o processo de contratação se dará por seleção simplificada, termo que a PEC 32/2020 não define. Essa modalidade de contratação se dará em observância a pelo menos uma das seguintes possibilidades:

I – necessidade temporária decorrente de calamidade, de emergência, de paralisação de atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço;
II – atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos; e
III – atividades ou procedimentos sob demanda.

Na Administração Federal, por exemplo, a Lei 8.745/1993 – que regulamenta o Inciso IX do Artigo 37 da Constituição – trata da contratação por tempo determinado e traz um rol bem específico do que é necessidade temporária de excepcional interesse público. A alteração proposta pela PEC 32/2020 insere no texto constitucional situações muito amplas para a utilização desse tipo de contratação na administração pública.

A primeira possibilidade traz a situação de paralisação de atividades essenciais. Assim, em uma possível greve, esse tipo de contratação pode ser utilizada para substituir os servidores públicos grevistas, colocando em xeque a eficácia do movimento reivindicatório.

Já no que diz respeito à terceira possibilidade, abre-se um leque muito amplo para a administração pública realizar esse tipo de contratação, pois não fica definido o significado jurídico do termo “sob demanda”, trazendo a possibilidade da utilização de critérios de conveniência momentânea para as contratações de trabalhadores e não de interesse de longo prazo da sociedade.

Os servidores contratados por contrato determinado serão vinculados ao Regime Geral de Previdência e seu vínculo se encerra no término do contrato.

Vínculo por prazo indeterminado

Os servidores contratados com vínculo por prazo indeterminado não terão qualquer possibilidade de conquistar a estabilidade. O acesso a esses cargos se dará por concurso público e, como detalhado acima, o futuro servidor terá de passar por, no mínimo, um ano em vínculo de experiência e precisará ter desempenho satisfatório para permanecer no cargo. Os futuros servidores poderão perder o cargo acordo com critérios definidos em lei ordinária e serão, a princípio, vinculados ao Regime Próprio de Previdência, havendo a possibilidade de que lei do ente em questão os transfira para o Regime Geral de Previdência Social.

Esse tipo de vínculo abre espaço para a queda de produtividade e piora da prestação dos serviços públicos para a sociedade. A ausência de estabilidade levará ao aumento da rotatividade no serviço público, o que pode levar à queda da produtividade, visto que quanto menos tempo um trabalhador permanece em uma função, menos consegue aprender sobre ela e com menor qualidade a executa. Também se abre precedente para favorecimentos e perseguições de caráter político, retirando do servidor as condições para que exerça sua função independente do governo de ocasião. Isso poderá levar à queda da qualidade do serviço público prestado à população.

Cargo típico de Estado

O cargo típico de Estado será o único vínculo dentro do novo regime jurídico de pessoal que terá a possibilidade de alcançar a estabilidade. O ingresso dos futuros servidores se dará por meio de concurso público e, como visto acima, consistirá também de um período de vínculo de experiência de, no mínimo, dois anos. Após esse prazo, caso o servidor atinja desempenho satisfatório, ainda terá de permanecer em efetivo exercício, por um ano, também com desempenho satisfatório para, assim, adquirir a estabilidade. Dessa forma, a aprovação no concurso público se concretizará somente após o vínculo de experiência, e a estabilidade somente após o término do vínculo de experiência e permanecendo por mais um ano em efetivo exercício, com desempenho satisfatório. Lembrando que
o significado de desempenho satisfatório será definido em Lei ordinária, ainda a ser editada. 

 

Outro ponto importante sobre a questão da estabilidade dos servidores que ocuparão os cargos típicos de Estado é quanto às possibilidades de perda do cargo. Atualmente a Constituição prevê a perda do cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado (quando já não é mais possível recorrer a nenhuma instância); mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; e mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar – até hoje não editada -, assegurada ampla defesa. As alterações desses dispositivos do Art. 41 da Carta Magna são muito importantes e merecem destaque.

 

Em primeiro lugar, a PEC 32/2020 abre a possibilidade para que a perda do cargo ocorra após decisão proferida por órgão judicial colegiado. Esse dispositivo pode causar grandes injustiças, pois pode impedir que instâncias superiores revejam decisões equivocadas. Em segundo lugar, a proposta insere no texto constitucional a solicitação de lei ordinária (que não exige quórum qualificado) para a definição dos critérios que serão levados em conta nos procedimentos de avaliação dos servidores. Isso significa a possiblidade de que seja mais facilmente aprovada ou modificada uma legislação que defina critérios subjetivos de avaliação dos servidores, fazendo com que a perda do cargo seja enormemente facilitada.

 

Por fim, os servidores dos cargos típicos de Estado estarão vinculados ao Regime Próprio de Previdência e serão os únicos que não poderão ser atingidos por medidas de redução de jornada e salário.

Cargo de liderança e assessoramento

Os cargos de liderança e assessoramento irão substituir os atuais cargos em comissão e as funções de confiança, que atualmente são destinados, por comando constitucional, apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento. Como se sabe, as funções de confiança podem ser ocupadas apenas por servidores que ocupam cargos efetivos na administração pública e os cargos em comissão são preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei. Para os futuros cargos de liderança e assessoramento não há restrição no texto da PEC para que somente servidores efetivos possam ocupá-los e nem mesmo qualquer percentual lhes seja destinado. Assim, pelo fato de que esses cargos serão preenchidos por meio de ato do chefe de
cada Poder em cada ente, a princípio qualquer pessoa, desde que preencha requisitos legais, poderia acessar esses cargos.

Talvez ainda mais importante e perigoso seja o fato de que os cargos de liderança e assessoramento que serão criados, caso a PEC 32/2020 seja aprovada, poderão ser destinados às atribuições técnicas no âmbito da Administração Pública. Como é do conhecimento geral, há no setor público centenas, talvez milhares de funções, de caráter técnico, cujos ocupantes desempenham trabalhos de grande relevância para o Estado brasileiro e para toda a sociedade. São servidores que prestaram concurso público, possuem grande qualificação e passam por processos de treinamento e ganhos de qualificação ao longo de suas carreiras públicas. Caso a PEC seja aprovada, essas funções
poderão ser ocupadas por indivíduos indicados politicamente, que não tenham qualquer compromisso
coletivo, mas sim com as corporações ou grupos de interesse responsáveis por sua indicação.

QUADRO: Síntese das características dos novos vínculos

QUADRO: Síntese das características dos novos vínculos

VÍNCULO DE EXPERIÊNCIA
CARGO TÍPICO DE ESTADO
PRAZO INDETERMINADO
PRAZO DETERMINADO
CARGO DE LIDERANÇA OU ASSESSORAMENTO
Forma de Ingresso

Etapa do concurso

– Concurso;
– Classificação final, entre os mais bem avaliados ao final do período do vínculo de experiência;
– Mínimo 2 anos de vínculo de experiência com desempenho satisfatório.

– Concurso;
– Classificação final, entre os mais bem
avaliados ao final do período do vínculo de experiência de um ano.

Seleção simplificada.

– Ato do chefe de cada Poder ou ente.

Estabilidade

Instável, uma parcela deverá perder o cargo

Estabilidade após 3 anos de aprovação no estágio probatório e efetivo exercício.

Não há.

Não há.

Não há.

Regime de
Previdência

RPPS/RGPS

RPPS

RPPS/RGPS

RGPS

RGPS

Perda do
Cargo

Lei disporá

Até 3 anos: 

Lei disporá

Após 3 anos: 

– Em razão de decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado;
– Mediante avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, assegurada a ampla defesa
– Mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa (CF)

– Lei disporá;
– Pode ocorrer durante todo o período de atividade.

– Término do contrato

– Ato do chefe de cada Poder ou ente.

Considerações finais

Os novos vínculos propostos pela reforma administrativa nos levam a uma analogia direta com a Lei 13.467/2017, a chamada reforma trabalhista. Naquela, foram institucionalizados diversos vínculos de trabalho precários, muitos dos quais anteriormente constituíam a malfadada estrutura essencialmente informal de nosso mercado de trabalho privado.

Ao propor a criação de vínculos sem estabilidade, com acesso feito sem a realização de concurso público e com possibilidade de aumento do peso das indicações políticas, a PEC 32/2020 traz para a administração pública problemas que hoje são típicos do setor privado, notadamente a rotatividade. E ainda pior: maximiza a possibilidade de que os interesses privados e de corporações se coloquem acima do interesse coletivo, ao ampliar a figura do contrato por prazo determinado e o leque de destinação dos cargos de liderança e assessoramento, em relação ao que hoje cabe aos cargos em comissão e funções de confiança.

Dessa forma, a PEC 32/2020, apresentada pelo governo Bolsonaro como uma modernização na forma de contratação do setor público, nada mais é que a institucionalização da precarização na administração pública e dos serviços públicos e a institucionalização de práticas patrimonialistas, que desde os anos 1930 toda sociedade tenta combater.

Baixe aqui a nota oficial do DIEESE:


Nota técnica – DIEESE